Encontrámo-nos num desses cafés novos que enchiam agora as ruas do teu bairro, onde o azulejo e o mosaico frios de antes tinham sido substituídos por peles mais quentes, seria se em nós houvesse uma proximidade que nunca existiu. Sem o eco de outras conversas, do encostar apressado de copos e pratos, ficámos só os dois com as nossas palavras, e com o silêncio que cabia entre elas.
Contei-te a minha estória, cabia em dez linhas aquilo que te queria contar, fora sempre assim, que respostas podia dar a perguntas inixestentes, nisso éramos iguais. Dez frases hoje, diferentes se tivessem saído de mim há um, dez anos, eu mudava, a forma como eu vivera a estória mudava comigo. A vida acontecera, com outras emoções, com outros sonhos, sem ti.
Pedis-te mais um café. Eu a medir-me por dentro e tu no segundo café, sempre me desarmara essa tua aparente confiança, teria sido inteligente fazeres-te hoje, como antes, à minha altura. Enquanto desviavas a atenção de mim, tentei guardar cada pormenor do teu rosto, generoso, fundo, inconsequente, hoje ainda como na primeira vez que te vi. Lembrei-me daquilo que tinha permanecido no tempo. Tu para mim eras um sonho perdido, um amor que não nasceu. Eu para ti seria a soma daquilo que não acontecera. E nisso éramos diferentes.
Os teus olhos voltaram para mim e demoraste-os no retorno dos meus. Depois encheste o tempo com as tuas banalidades, com o enfado de quem procura magia em folha branca. Fosse aquela mesa quadrada, para te obrigar a escolher entre sentares-te ao meu lado ou no oposto de mim, mas diria que escolheste de propósito aquele café, feito de vidas redondas, como tu. Não sei se o teu pragmatismo te permitiu perceber que não foi a falta de geometria que me fez fugir, parti porque transbordavas em mim. Não havia nada a perdoar, quando nada era devido.
Já cá fora, no passeio que divide o lado quente de dentro e o caos da cidade que gela a superfície daquilo que somos, despedi-me de ti, esse limbo apertado colou-nos mais do que a vida, e assim à distância de não caber mais ninguém entre nós, ocorreu-me dizer-te o quanto tinha gostado de ti, mas não sabia em que tempo te devia conjugar. Num beijo deste-me o nosso momento pendurado no tempo e partiste. A vida é feita de palavras mudas, mas ambos sabíamos que tentar o inverso também não é fórmula que resulte em caminho. Talvez fôssemos obtusos para o amor.
Continuas aqui, sob a pele daquilo que sou, daquilo que me vou acontecendo. Ilusão é aquilo que somos à superfície. Houve certamente dias em que não te vi, talvez com sorte tenha havido semanas inteiras em que não apareceste. Houve dias, semanas, meses, em que viveste comigo todas as horas, que me roubaste todos os minutos. Que te procurei, que te encontrei, que te perdi, outra e outra vez. Nunca saberás o quanto me tocaste... do quanto a minha vida te pertence.
Estes são a A. e o D., são amigos desde quase sempre, e sempre é muito tempo para quem tem 6 anos. Quando a A. vive em Portugal são também vizinhos, nesses dias, passam-nos a queimar as horas, com os pés descalços a voar no chão do quintal, com a alma irrequieta de quem é feliz. Entram na casa um do outro como se fosse sua, porque melhor que nós, crescidos, sabem que a amizade não tem fronteiras. Nunca os vi zangados, não sei se pela paciência infinita do D. se pela gargalhada solta da A., talvez achem que o tempo que têm pela frente é muito curto para zangas. Quando a A. tinha três anos perguntava ao D. com os olhos doces: "quando fores crescido, casas comigo?" E o D. derretia e dizia que sim. Depois cresceram um bocadinho, muito, e a A. já só pergunta: "Sou a tua melhor amiga?" E ele timidamente confirma. Na verdade não sabe dizer não à A. Quando se reencontram, encostam-se assim, como que a esmagar o tempo, que em seus corações não passou, e retomam a conversa, com a leveza que só conhece quem como eles tem um amigo assim.
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